domingo, 8 de julho de 2012

O início

Há umas semanas um colega de trabalho comentava comigo, divertido e inocentemente, que uma senhora que lá tinha ido, tinha perguntado se "a menina das picas" estava, perguntando por mim. Eu olhei para ele com os olhos vazios e ouvi um "piiiiii", que era o meu cérebro a dar sinal de morto quando me tentei lembrar o que é que eu estava ali a fazer.

Na semana passada iniciei um curto estágio no sítio onde, desde sempre, sonhei trabalhar. Na sexta-feira, mesmo à hora de sair do Porto, quando se iniciava a passagem de turno às 21h, a P. chamou, pedia uma massagem porque lhe doíam muito as costas depois de ter passado a tarde sentada no cadeirão.
Quando cheguei ao quarto, o marido despedia-se com um beijo na boca. A P. é tratada pelo título profissional, antes do nome. Tem 41 anos, mas podia ter 20 ou 90, a idade é irreconhecível. Já vi muitos corpos, muitos com caquexia, mas como esta não me lembro. O corpo reduziu-se ao esqueleto, que já não a suporta. Não tem força para tossir, embora precisasse para eliminar o desconforto que sente. O marido - alto, moreno, cheio de vida - fez-lhe um último afago na cara a ela - na cama, tão reduzida no corpo, mas tão imensa na presença - e saiu do quarto com a convicção de quem não pode nada.

A P., sentada na cama, rodou com a minha ajuda para o lado, e eu comecei a espalhar o creme pelas costas e pelos ombros. Perguntei-lhe sobre a profissão, que está inscrita no nome pela qual a tratamos. Contou-me o que fazia e como gostava. Perguntei-lhe sobre ela estar ali. Ela contou-me como a vida que conhecia mudou tanto, em pouco mais de dois meses. Agora diz "É um dia de cada vez". Fala num sopro, aproveitando a boleia do ar que sai dos pulmões. No final disse que estava muito mais aliviada, com a massagem. E agradeceu-me, quando, na verdade, quem tinha de agradecer era eu. Aquele momento lembrou-me de coisas que tinha esquecido.

Os vinte minutos que durou aquela massagem refletem-se num espaço infinito dentro de mim. O sentimento é inexplicável, não sei se ali a vida é tão complexa que não se pode entender, ou tão simples que não precisa ser entendida.

E por isso, na manhã seguinte, a "menina das picas" já foi trabalhar com muito mais dentro de si.

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