segunda-feira, 30 de julho de 2012

Há coisas assim

Raspamos o fósforo contra a superfície. Insurge uma chama tão forte, tão viva, que absorve todas as atenções. Naquele momento, não há absolutamente mais nada a não ser aquela chama. É tão intensa que parece que vai durar para sempre. Até nos podemos distrair e queimar um pouco os dedos. Mas afinal, passados uns segundos (muito mais curtos do que se poderia adivinhar), aquela chama com ares de eterna apaga-se. E não resta mais que um pedaço de pau queimado.

Tão magnífico o espetáculo como a tragédia final.

terça-feira, 24 de julho de 2012

A ti

Amo-te como quem não quer dizer nada, nem lembrar de coisa nenhuma, nem de mais ninguém. Como se desejasse que os nossos mundos se encontrassem neste momento pela primeira vez. Com a esperança de reconquistar a energia que se escapou da força gravítica que nos une.

E por ti, e pelos teus olhos doces que me envolvem em cada olhar, por esse abraço que não tem fim e me atravessa, por ti, e por nós – quero ser o melhor que possa ser, e esperar que isso seja o suficiente para que te me dês a cada instante.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Epifania

Último dia no internamento de paliativos.

Vinha no autocarro de regresso a casa, tinha dormido já meia hora, e que me tenha apercebido, nem vinha a pensar em nada. E senti. Senti.

Nunca cheguei a perceber o que tinha ido procurar no mestrado, nem porque me tinha inscrito sequer. Mas hoje encontrei a resposta. Também não sei qual é, como não cheguei a perceber o ponto de partida. Mas senti. Senti!

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Era mesmo, mesmo isto!

Era gaja para mandar abaixo dois feijõezinhos mágicos à moda do Dragon Ball. Aqueles que ele tomava quando estava todo f*didinho e num ápice se punha novo, fresco e viçoso como uma alface.


A noite passada estava a programar o despertador, aquele aparelho maravilhoso que faz o favor de me calcular automaticamente quantos minutos faltam para acordar, e ainda tem a real lata de descontar uns segundos. O resultado foi desanimador: 20 minutos. E ainda consegui ter tempo para ter dois pesadelos. Ninguém merece ter dois pesadelos em vinte minutos. Um com dentes, como de costume, e outro com uma doente internada no serviço de paliativos: encontrei-a caída no chão, e não chegava à campainha de alarme, mas não saía do pé dela para pedir ajuda porque aprendi no socorrismo que não se pode abandonar a vítima... foi tão estranho e estúpido como só os sonhos conseguem ser. Vá, às vezes a realidade também não fica muito atrás...

Mas prontos, à falta de feijões, acho que vou ter de optar pelo método mais convencional e dormir à moda antiga, mesmo.

sábado, 14 de julho de 2012

Lanchinho d'hoje

Eu (armada em francesa) - Isso é um petit gateau?
A senhora do café (armada em inglesa) - Hmm... Não! É um muffin.
Eu (Ela 'tá a falar a sério? Poker face. 5 segundos de silêncio, e rendida à língua portuguesa) - Tem chocolate derretido no meio?
Ela - Tem.
Eu - Então venha.
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Eu - Queres provar amor?
Ele - Não, obrigada.
Eu (depois três colheradas sôfregas) - Não sei como resistes a provar.
Ele - Se tivesses corrido 14 km como eu, percebias.
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Deixa ver se percebi: eu como o "muffin-que-não-é-petit-gateau" à pressa porque sou uma preguiçosa que não se importa em ficar gorda.

Porreiro...

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Apontamento #2

Tomei um banho relaxante.
Passei creme com o meu perfume preferido por todo o corpo.
Vesti um pijama lavado.

E o cheiro ainda não me saiu da memória.

Apontamento #1

O F. foi a personagem principal de uma urgência de ontem. Os coágulos de sangue interromperam o caminho que a urina devia seguir, e não havia maneira de a tirar cá para fora.
Nas unidades de cuidados paliativos também se corre. Também há urgências. E idas ao bloco para intervenções cirúrgicas marcadas na hora.
O F. foi ao bloco, e voltou com uma coisa chamada "sifonagem", que é quando se coloca a bexiga em lavagem contínua de soro. Apesar das medidas agressivas de ontem, hoje estava bem-disposto. Tão bem, que depois da sopa chata do jantar dei com ele feliz a comer um magnum after dinner e com um haagen-dazs na fila de espera, que marchou logo de seguida. Incentivei-o a comer, e ri-me quando no fim lambeu os dedos. Foi tudo muito mais natural do que quando tento convencer as pessoas a comer com menos sal e menos gordura [eu: a cheia de colesterol que adora enchidos...].

Lá vejo muitas lágrimas, mas também vejo pelo menos outros tantos sorrisos.

O H. hoje teve alta. Foi pelo corredor fora a acenar e a dizer "obrigado", até deixarmos de o conseguir ver e ouvir.
A M. entrou hoje. Tinha tantas dores ao tão mínimo toque que era perturbador. Mostrava um sofrimento que ia além do que eu pensava ser humanamente suportável.

Ao chegar a casa, depois de 13 horas de turno, inspirei-me no F. e comi um corneto de chocolate.

Amanhã é outro dia. Para a maior parte de nós.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Flutuações

Cortei o cabelo - a forma mais rápida e simples de perder peso.

E depois, em jeito de vingança, comi uma nata polvilhada de canela - a forma mais rápida e deliciosa de recuperar o peso de volta.

domingo, 8 de julho de 2012

Cumplicidade



É o que estes dois têm de mais perfeito. Um dos princípios mais estruturantes do amor. O betão armado - expressão com que tanto nos rimos nos nossos estados coletivamente ébrios em acampamentos.

E hoje: 107 meses. Mais um, e fazemos conta redonda :) Ando a conjecturar a melhor prenda de aniversário de sempre!

O início

Há umas semanas um colega de trabalho comentava comigo, divertido e inocentemente, que uma senhora que lá tinha ido, tinha perguntado se "a menina das picas" estava, perguntando por mim. Eu olhei para ele com os olhos vazios e ouvi um "piiiiii", que era o meu cérebro a dar sinal de morto quando me tentei lembrar o que é que eu estava ali a fazer.

Na semana passada iniciei um curto estágio no sítio onde, desde sempre, sonhei trabalhar. Na sexta-feira, mesmo à hora de sair do Porto, quando se iniciava a passagem de turno às 21h, a P. chamou, pedia uma massagem porque lhe doíam muito as costas depois de ter passado a tarde sentada no cadeirão.
Quando cheguei ao quarto, o marido despedia-se com um beijo na boca. A P. é tratada pelo título profissional, antes do nome. Tem 41 anos, mas podia ter 20 ou 90, a idade é irreconhecível. Já vi muitos corpos, muitos com caquexia, mas como esta não me lembro. O corpo reduziu-se ao esqueleto, que já não a suporta. Não tem força para tossir, embora precisasse para eliminar o desconforto que sente. O marido - alto, moreno, cheio de vida - fez-lhe um último afago na cara a ela - na cama, tão reduzida no corpo, mas tão imensa na presença - e saiu do quarto com a convicção de quem não pode nada.

A P., sentada na cama, rodou com a minha ajuda para o lado, e eu comecei a espalhar o creme pelas costas e pelos ombros. Perguntei-lhe sobre a profissão, que está inscrita no nome pela qual a tratamos. Contou-me o que fazia e como gostava. Perguntei-lhe sobre ela estar ali. Ela contou-me como a vida que conhecia mudou tanto, em pouco mais de dois meses. Agora diz "É um dia de cada vez". Fala num sopro, aproveitando a boleia do ar que sai dos pulmões. No final disse que estava muito mais aliviada, com a massagem. E agradeceu-me, quando, na verdade, quem tinha de agradecer era eu. Aquele momento lembrou-me de coisas que tinha esquecido.

Os vinte minutos que durou aquela massagem refletem-se num espaço infinito dentro de mim. O sentimento é inexplicável, não sei se ali a vida é tão complexa que não se pode entender, ou tão simples que não precisa ser entendida.

E por isso, na manhã seguinte, a "menina das picas" já foi trabalhar com muito mais dentro de si.

A nódoa

Usava uma t-shirt branca. Estava a comer distraidamente. No meio daquele prazer, sujei-me como uma criança desajeitada. Tentei com os dedos apagar os vestígios do meu descuido, mas só consegui espalhar mais a mancha. E agora: camisola na lixívia. Embora tenha medo que o pano não volte a ser o mesmo, prefiro-o mais fraco, mas limpo da nódoa.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Como é

É como decidir entrar num deserto com um mapa na mão, e depois de tanto andar, perceber que é inútil tentar voltar atrás. As areias são todas iguais, o caminho já foi esquecido, e o mapa não mostra o regresso. O ponto de partida ficou longe, tão longe que já não há certezas de que seja possível voltar lá. Ou que ele ainda exista sequer.

domingo, 1 de julho de 2012

Facto #3

Mais um dia como hoje e ganho úlceras de pressão.

Facto #2

Se não tivermos a capacidade de estar suficientemente concentrados, a vida não passa de uma distração de nós mesmos.

Facto #1

Continuo a ficar surpreendida quando uma mulher me diz que não pode ver sangue.

Hoje a S. casou-se

Foi a primeira vez que fui ao casamento de uma amiga.
E podia dizer muita coisa - que foi lindo, emocionante, que fiz beiço de choro mal a vi entrar na igreja. É tudo verdade.

Mas, no final das contas, o que mais me apraz dizer é que, para mim, casamento é tipo filhos.
Lindo, lindo, mas é se for dos outros.