segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Letargia

Tenho sono desta vida. Não por nada de extraordinário, nenhum acidente de percurso, ou pelas coisas que tenho de fazer. Só sono, um cansaço que não passa quando durmo.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Começa assim


"Era uma manhã muito, mas muito cinzenta. Poderia não sê-lo meteorologicamente, mas aos olhos de Maria era, sem dúvida, a manhã mais cinzenta que já vira ao acordar. Era o seu último dia. Levanta-se, toma o duche, lava os dentes. Come o pequeno-almoço, refeição que mais gosta, com tranquilidade. Aparte da tristeza do céu, era na verdade um dia muito calmo. Pardacento, triste, mas calmo, como um cemitério às 3 da tarde.

Depois de lavar a louça, troca os chinelos confortáveis por uns sapatos. Hora de sair à rua, trabalhar. Decide-se por cumprir este dia comum, como última homenagem ao facto de ter estado viva."

Caraças, caraças! Tenho uma tese para fazer e a Maria e o D. andam a fervilhar na minha cabeça.

sábado, 13 de outubro de 2012

Tu

És a incógnita da minha equação. Por isso às vezes te odeio tanto como te amo.

O meu corpo é o teu território

O meu corpo é o teu território. Pedes licença para entrar como quem pede licença a si próprio. O meu corpo é um prolongamento do teu, uma extensão.

Conquistaste-o quando me penetraste a alma.

Quando me dispo de pudores olhas para mim como se nunca me tivesses visto dessa forma. É sempre um olhar de admiração e descoberta. Todas as vezes são a primeira. E é com esse olhar que entras em mim antes de me tocar.

Cobardia

A cobardia é mais do que a ausência de coragem para fazer coisas. É bem mais que isso – é o medo de enfrentar a verdade. Enterrá-la o mais fundo possível e fazer de conta que não se sabe aquilo que, no fundo, não deixa nem um fiapo de dúvida. Fazer ouvidos moucos, passar por cima, evitar sequer lembrar o que se sente, o que se sabe. No fundo, viver como se não se fosse morrer nunca. Viver a vida que não lhe pertence, que não é sua, que nunca foi, nem nunca será.

Fazer de conta que não se sabe isto e andar para a frente é cobardia.

E até nisto há uma boa dose de coragem.


sábado, 6 de outubro de 2012

Há cinco anos atrás

Precisamente. A estas horas estava a dormir numa cidade do Pólo Norte. Tinha chegado há muito pouco tempo a Rovaniemi, a terra do Pai Natal. Há cinco anos atrás fui à Finlândia ver como se fazia enfermagem comunitária. Fiquei lá precisamente 89 dias, durante os quais escrevi um diário - coisa que já não fazia desde pequena, quando ainda usava aqueles super-seguros-com-cadeado-e-chave-miniatura. Calculo que talvez uns oitenta por cento do "diário" - que é um caderno normalíssimo, de linhas A4 - está cheio de baboseiras, principalmente acerca das saudades que tinha de casa. Suponho que as saudades em si não sejam baboseira nenhuma, o mesmo já não posso dizer sobre escrever a mesma coisa praticamente todos os dias. Apesar de não ter ainda relido por completo o que escrevi nesse período, considero a maior relíquia que trouxe de lá, porque faz renascer a memória das coisas. Agora que já passaram cinco anos, ocasionalmente abro uma página aleatória, nos raros momentos em que quero revisitar aquele sítio. E hoje aconteceu isso. Mas, como por esta altura estava mesmo lá, em vez de abrir uma data qualquer, fui relembrar o que fiz justamente no dia de hoje, mas desse ano, em que nem me lembrei que era feriado em Portugal. E há cinco anos atrás, a esta hora, já tinha escrito no meu diário: 

"Rovaniemi, Finlândia                                5 de Out. 2007                                      23h32m

Dia 32

Escrevo hoje, pela primeira vez, fora de Savonlinna. Nesta viagem que foi a  mais longa da minha vida descobri o verdadeiro significado, não do tempo cronológico, mas do outro - aquele que se vive. É que esta viagem de dez horas não me pareceu tão longa como a de avião, que me trouxe à Finlândia.
Atravessamos a Finlândia do Sul até ao Norte, e o que pude ver enquanto ainda era dia, era em tudo semelhante a Savonlinna. Estou curiosa que amanheça para ver Rovaniemi, porque quando chegamos, além de ser noite, estava nevoeiro cerrado.
As outras três do quarto já dormem, e não devo demorar muito a acabar de escrever porque tenho a luz do quarto acesa. A M. acabou por vir, mas só decidiu uma hora antes. (...)
Hoje estou com mais saudades de casa, daquelas pouco saudáveis, que doem. Na viagem tive de apagar mensagens do telemóvel, porque estava com a memória cheia, e relê-las deu-me tantas saudades!... (...) Hoje comecei a ler a Paula de Isabel Allende, que a C. me emprestou, e estou a adorar! Isto não vem a propósito de nada, simplesmente tenho-me esquecido de comentar que acho fascinante a capacidade que os Finlandeses têm para se rirem de si próprios. Na nossa turma, um óptimo exemplo, foi quando fizeram a representação para apresentarem o país, e recriaram cenas caricatas: eles bêbedos e nus na sauna, a fecharem a porta na cara uns dos outros, sentarem-se longe ou preferirem ficar a pé a sentar-se perto dos outros no autocarro, (...) Ontem quando vinha à tarde para a escola, com dois colegas finlandeses que pertencem ao meu grupo de trabalho, depois de irmos à rua "to continue to collect daaaaaaaaata" as S. sais, eles preferiram subri quatro andares a pé, do que ir no elevador, que estava mesmo ao lado das escadas. Claro que eu ia-lhes a dizer que não percebia porque é que eles subiam e desciam tanta escada e eles responderam logo que preferem porque faz bem à saude mas claro que depois ficam a cheirar mal e assim também ninguém se chega ao pé deles e por isso andam sempre sozinhos, tristes e não têm amigos. Fartamo-nos de rir os três com a ideia(...).
Amanhã de manhã vamos tentar encontrar o Pai Natal. Hoje escrevi-lhe uma carta para entregar amanhã:
Dear joulupukki / Querido Pai Natal
My name is Maria and I'm 21 years old.
You might find strange that I'm writting to you (perhaps I'm a little old for that) but the true is that I'm having so much pleasure doing this. Deep down inside I still believe you. (...)"

E a carta seguia por ali fora a pedir uma série de coisas remélicas, tipo voltar bem para coisa e coisas do género.

Há cinco anos atrás, eu escrevia uma carta ao Pai Natal. A emoção era tanta, que lhe dizia que ainda acreditava um bocadinho nele. Achava que estava bem lançada, estava satisfeita com o que fazia para a idade que tinha, embora quisesse sempre mais. Tinha saudades terríveis da minha terra, do calor, do mar, do cheiro, e principalmente das pessoas que amo.

Cinco anos depois foi dia de hastear a bandeira ao contrário na comemoração da Implementação da República. E foi o próprio Presidente da República que hasteou a vergonha da nação - em mais do que um sentido. Olho para trás, para os cinco anos que passaram, e acho que não vivi o suficiente. Fico com sede do que não vivi, e tenho tanta, tanta pena que a minha profissão condicione de forma tão importante o meu bem-estar. Vivemos numa ditadura, disso não tenho dúvidas. Num estado de terror, de caos, de impunidade, onde praticamente só se safam mesmo bem os incompetentes e os burlões. Onde as pessoas de valor têm dificuldade em encontrar lugar, tal é a debandada da coisa. Não sei se o problema está no país, se no mundo, se em mim, mas não estou a encontrar o meu lugar. E por mais que queira que a minha casa seja ao pé de quem amo, esta casa mete-me medo, está a ficar fria, e a minha necessidade de partir já é tão grande quanto o meu desejo de ficar.

E a história do Pai Natal não acabou da melhor forma. O bocadinho de romantismo que tinha foi ao ar quando vi que custava 20eur tirar uma fotografia com ele. E pior foi quando falei com ele e vi que não sabia falar português. Ele prometeu que era o próximo idioma que ia aprender, mas um Pai Natal a sério havia de ser mais poliglota que aquele da televisão.